Durante toda sua vida, Michael Jackson tentou se eternizar,
acreditando nos símbolos exteriores de sua fama incomparável e cultivando o
ícone que se tornou. Depois de nos oferecer uma série de espetáculos — bons, com
suas músicas e shows, e ruins, com sua decadência física e moral —, o rei do Pop
continua a aprontar das suas, ainda que a cortina tenha caído.
Os lances do julgamento de seu médico, que já dura três semanas e deve se
estender até o fim do mês, não me deixam mentir. Como se não bastasse tudo
aquilo a que assistimos — seu pai que lhe dava surras terríveis faturando com a
venda de livros, seus filhos dando entrevistas, embora o cantor jamais houvesse
permitido que seus rostos fossem sequer mostrados na rua —, o mundo se chocou
com a foto de seu corpo estirado sobre uma mesa de necrotério, exposto ao
açougue público.
Os depoimentos revelam o triste fim de um homem terrivelmente escravizado por
drogas medicamentosas e que tinha meios financeiros para obtê-las, ao contrário
da imensa maioria de dependentes químicos que padecem todos os minutos em todo o
planeta. Se nos debruçarmos sobre o real significado do julgamento do médico
Conrad Murray, veremos que a grande discussão que esse caso
levanta não diz respeito à imagem do Michael morto, mas ao hábito irresponsável
de alguns médicos que assinam receitas como se fossem cheques em branco. Que
isso ajude a coibir essa prática repugnante, que é pior do que a de um
traficante, pois ela se reveste da autoridade de um jaleco branco.
Antes de estrear em 2009 a turnê do show This Is It, que só não
aconteceu porque ele morreu na véspera, Michael já vinha alimentando a imprensa
com suas bizarrices. Dizia-se que ele descobrira um câncer de pele, mas não
queria fazer radioterapia; que tinha transtorno alimentar e se recusava a comer;
que vivia assombrado pelo medo de que seu nariz caísse, que não lhe restavam
mais orelhas e por aí ia. A lista é imensa.
Na época de sua morte, assinei um artigo que evocava a análise de um
sociólogo americano que dizia que o fascínio do público por celebridades
autodestrutivas (Amys e Britneys da vida) nasce do nosso próprio medo de
enlouquecer. No caso de Michael, a coisa tinha contornos mais sinistros: o
cantor vinha presenteando o público há tanto tempo com suas esquisitices, que
nos tornamos monotonamente habituados a elas, como parte da paisagem. Ante seu
circo dos horrores, nós até perdemos o tal medo da loucura, porque sabíamos, no
fundo, que ninguém seria capaz de chegar tão longe.
Embora não caiba a mim nem a ninguém julgá-lo, não penso que Michael tenha se
tornado aquele pálido espectro por conta das tragédias de sua infância ou pela
mal administrada superexposição precoce. Quase todos nós já vivemos traumas
difíceis, perdas inomináveis, e seguimos adiante para pagar nossas contas e
zelar por nossas famílias, alternando momentos de tristeza e felicidade. Essa é
a vida.
Michael teve um pai tirano e uma mãe omissa, mas também teve o grande
produtor Quincy Jones, que acreditou em seu talento incontestável e lhe deu asas
para que ele alçasse voo solo, um luxo de que poucos artistas, convenhamos,
podem se gabar. O universo lhe dera uma segunda chance.
Mergulhado no vício e isolado na bolha que construiu ao longo de três
décadas, Michael descolou-se da realidade, acreditou que o artista vinha antes
do homem, não se deu a oportunidade de aproveitar as coisas mais simples da
vida. Tentando permanentemente se comportar como ídolo, acabou encarnado o pior
papel que um ser humano possa querer assumir, o de vítima.
Vejo a linda Immaculée Ilibagiza, sobrevivente do terrível
genocídio em Ruanda, que esteve esta semana no Brasil para divulgar sua causa e
conscientizar o mundo de que tragédias como essa devem ser evitadas a qualquer
preço, mas sempre com um sorriso iluminado no rosto. Vejo Reynaldo
Gianecchini, carequinha, dando seu depoimento para dar força às
crianças com câncer com os olhos marejados e o sorriso franco, cheio de
esperança. São tantos exemplos de força, superação e beleza extraída da dor.
No fim, o que faltou a Michael ao longo de sua trajetória foi uma bela
arejada nas ruas, um choque de gente comum, encontrar nas esquinas pessoas que
divergissem de suas opiniões, que também tivessem suas histórias difíceis para
dividir, que não dissessem apenas amém a sua incontestável genialidade criativa.
Alguém para quem pudesse telefonar no meio da noite e que lhe dissesse para
acordar para a vida, que o ajudasse a limpar a mente de seus problemas
autocêntricos, que não lhe desse razão em tudo, que o levasse para paquerar, ver
um filme e jogar conversa fora, só para arejar a cabeça. Alguém de que Michael,
eu e você, todos precisamos para fincar os pés na terra.
O que faltou a Michael foi, enfim, um bom amigo.
colunas.epoca.globo.com
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